IESA - Santo André
2º ALEN - Turma 2011

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Apocalipse por Jorge Barbosa

Eu nunca quis o Céu e o padre sempre me repreendia por isso. Eu era bom com ganhar dinheiro sem explorar os pobres, eu era um avarento muito solitário das sociedades antigas. Passei para republica sem desapontamentos. Às vezes rezava umas ave-marias sem vergonha pelos meus negócios, meu verdadeiro casamento foi com o Dinheiro.
Foi com grande desencanto que morri. Nem o anjo da morte nem o capeta apareceram. Eu queria um pouco de paz, ainda vestia os trajes velhos de sempre, minha alma era uma replica de minha condição em vida, minha vida foi de muito trabalho sem amor, amor desses que viram o estomago em borboletas.
Meus funcionários fizeram um velório simples: velas brancas, preces sinceras, lágrimas involuntárias e poucas flores. Eu estranhava olhar meu corpo morto e eu em alma do lado. Meus familiares tentaram meu usurpar até o último instante com piadas e fofocas, caíram do cavalo, levaram só meus sapatos furados dos pés no caixão. Eu não usava jóias, relógios ou dentes de ouro. Deixei em testamento meus sinceros agradecimentos aos meus fieis funcionários e inquilinos. Furiosos meus familiares arrancavam os cabelos e soltavam palavrões. Ri muito com isso.
 Depois não lembro o que houve: primeiro um clarão, um zumbido nos ouvidos, a luz fugindo e os sentidos também. Pareci-me que me desligaram da tomada, a escuridão recolheu completamente, sem sons, sem retrospectiva, sem desculpas e sem culpas.
Anos e anos dormi sem pensar e sem sonhar até que raios e trovões despertaram-me para a vida novamente afastando das trevas, o tempo é capaz de muitas coisas, pensei que era o apocalipse de Deus e seus escolhidos, mas não era: o caixão tinha sido arrombado, ninguém me esperava, eu estava descalço, minhas carnes estraçalhadas por vermes e os ossos que restaram estavam sendo arrastados para o crematório.
Não gritei nem blasfemei contra Deus e seus Santos, perdoar é divino e errar é humano, olhava aqueles restos como algo que eu não era mais, não sentia dores nem tremores e nada mais me abalava. A vida é um rio que corre para o mar e a morte é uma curva desse rio correndo para o mar. Eu era uma alma penada e ninguém olhava por mim.
Sai do cemitério cedinho, uma pena branca vôo na minha frente, a escuridão se afastou de mim plenamente e a chuva caiu intensamente, gotas grossas e lentas, continuei em frente e os salgueiros levantavam seus galhos longe de mim, não havia pessoas nem almas nas ruas, a cidade estava mais cinzenta e fria do que nunca, eu era um estranho na minha vila natal. Uma vida pode ter mil espíritos, mas mil espíritos não podem ter só uma vida.
Era meio dia quando reconheci a igreja de minha infância atrás da pena branca, onde fiz a primeira comunhão, a crisma, briguei com padre muitas vezes e dei tanto dizimo. A Igreja estava cercada com muitos muros e grades, o veleiro do lado esquerdo da entrada principal foi substituído por um pátio maior, senti uma tristeza tão grande, chorei minha infelicidade e minha solidão, a morte não tira férias e Deus também não, eu brilhava uma luz tênue, não tinha sombra nem sapatos, a chuva acalmava, minhas lagrimas foram substituídas pela garoa fina de São Paulo e eu resolvi seguir em frente atrás da pena branca que mais uma vez parti u abrindo meus novos caminhos pela eternidade.
Acho que andei mais umas duas horas, já era começo da tarde e encontramos uma porta aberta, a pena tornou-se um circulo verde no teto, uma mesa coberta de branco, tocava Bach, Ave Maria, eu continuava descalço, diante de mim as pessoas eram elegantes acabavam de ouvir uma palestra, pediam paz, proteção e que eu falasse. Falei no meu português informal e me chamaram de perdido, inferior e impróprio. A luz alvíssima aumentou inundando o ambiente e apagando o circulo verde no teto, sai como entrei atrás da pena que ressurgiu do lado de fora pronta para minha partida.
Com o fim da tarde, a chuva piorava de novo, a pena velozmente me conduzia de um ponto a outro nas ruas que iam se inundar. Os bichos sabendo disso não apareciam. Duas quadras depois eu encontrei outra porta aberta, um casarão de chão de terra batida. A pena entrou sem mim e como mágica desapareceu. Eu vi lá muitas pessoas usando panos e mais panos em camadas, falei sem querer e perguntaram: “És um orixá”?  Respondi espontaneamente: “Não sei o que isso”. E uma senhora bem velhinha, uma baiana dessas que vende acarajé nas ruas de Salvador, falou algo impronunciavam, vendo que eu não respondia, perguntou assim: “Você está morto”? E eu disse com uma auréola verde na cabeça: “Achou que sim, como rapé não é rapadura, senhora”. A mulher arregalou os olhos e voltou a falar um monte de coisas impronunciáveis. E eu parti sem querer entender, acho que nessa hora voltei a ser uma alma penada e indesejada como na porta anterior, minha auréola sumiu com uma brisa mais forte, minha luz diminui e a pena voltou a voar na rua.
A madrugada chegou sem avisar e eu estava quase voltando para o ponto de partida, as trevas, o cemitério, o desconsolo, sentia-me menos vivo do que morto, eu estava intatiavel e perdido, não tinha sapatos nem sombra, quando um homem misterioso recolheu a pena branca e acenou para mim no meio daquela tempestade incessante. Andei calmamente até ele, e ele não fugiu. Li no portal onde ele estava: Terreiro Umbandista... Tomamos uma aguardente quente e comemos um pão molhado. Aquilo me aqueceu a alma, desembestei a contar minha historia e a  porta abriu-se. Um galo cantou longe e o homem misterioso devolve-me a pena. Subimos as escadas floridas, luminosas e douradas. Senti cheiro de mirra e encontrei o socorro.

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